Luxo, um pouco de história, Chanel e a liderança Feminina
Por Mônica de Carvalho Pereira – Especialista em branding, marcas de luxo e ex-Diretora de Marketing da Chanel no período de 2012 a 2014, quando a marca era distribuída pela Puig Brasil
E por que falar de Chanel no momento atual? Porque, para falar com mulheres, as marcas precisam ter uma cultura desenvolvida por mulheres!
Chanel é uma das raras casas de moda que é gerida por duas mulheres. A CEO Global desde 2022 é Leena Nair, e a Diretora Criativa desde 2019 é Virginie Viard.
Quando Karl Lagerfeld faleceu, em fevereiro de 2019, Virginie Viard assumiu a direção criativa da Chanel. Ela tinha o difícil desafio de manter o legado deixado pelo designer alemão, que modernizou a marca durante seu período de 36 anos, sem deixar de lado a tradição e os códigos clássicos, ao mesmo tempo em que realizava verdadeiros espetáculos de moda.
Em cinco anos no cargo, a estilista francesa abandonou os cenários inusitados e apoteóticos que viraram marca registrada no trabalho de Lagerfeld. Os desfiles ficaram mais enxutos e as modelagens das peças mais simplistas. Contudo, ao que tudo indica, os clientes reais estão satisfeitos. Sob a liderança de Viard, o segmento de prêt-à-porter (pronto para vestir), que é a linha mais comercial da Chanel, multiplicou-se por 2,5 e cresceu 23% apenas no ano passado.
(Fonte https://www.metropoles.com/colunas/ilca-maria-estevao/chanel-recorde-vendas).
Por mais que as redes sociais e os jornalistas especializados critiquem a “moda” desenvolvida por Virginie, os clientes têm se mostrado satisfeitos, refletindo no crescimento das vendas ao longo dos anos. Vale lembrar que a novidade na moda é o que alimenta as matérias e as análises dos especialistas, mas nem sempre novidade quer dizer sucesso entre os clientes – vide Raf Simons na Dior – foi uma grande novidade, os jornalistas na época adoraram, mas houve uma inadequação de estilo e reflexo negativo nas vendas.
Mas quem é Virginie Viard?
A primeira mulher a assumir a casa depois da morte da sua fundadora, Gabrielle Coco Chanel. Virginie nasceu em Lyon, cidade da França reconhecida pela sua indústria têxtil, em 1962. Seus avós eram fabricantes de seda. Ela começou estudando e trabalhando com figurino como assistente de Dominique Borg, que já fez bastante coisa em teatro e cinema (Dominique, aliás, tem dois Césares de Melhor Figurino, um por “O Pacto dos Lobos” de 2001 e outro por “Camille Claudel” de 1988). A estilista entrou na Chanel em 1987 como estagiária, cuidando da parte de bordados e lidando diretamente com a maison Lesage. Saiu da maison para fazer parte do time de Lagerfeld na Chloé na segunda temporada que ele cuidou do estilo da marca, entre 1992 e 1997. Nesse meio tempo, arrumou espaço na agenda para trabalhar na equipe de figurino de dois filmes que são bem conhecidos dos cinéfilos cult: “A Liberdade é Azul” de 1993 e “A Igualdade é Branca” de 1994, parte da trilogia das cores de Krzysztof Kieslowski. Aí ela volta para Chanel em seguida como coordenadora de alta-costura, e em 2000 passou a coordenar também o prêt-à-porter.
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Quem é Leena Nair?
Leena Nair, uma talentosa executiva de negócios indiana, nasceu em 1969 na cidade de Kolhapur, Maharashtra. Os anos de formação de Nair foram marcados por um compromisso inabalável com a educação, uma característica que lhe seria muito útil nos anos seguintes. Ela frequentou a Holy Cross Convent High School em Kolhapur antes de ir para o The New College na mesma cidade. Impulsionada por uma paixão por tecnologia e negócios, ela obteve seu diploma de bacharel em engenharia eletrônica e de telecomunicações no renomado Walchand College of Engineering, em Sangli, Maharashtra. A seguir, prosseguiu seu percurso acadêmico na XLRI – Xavier School of Management, onde se destacou como medalhista de ouro, demonstrando a sua mestria na área.
A jornada profissional de Leena Nair é uma prova de sua determinação, resiliência e habilidades de liderança incomparáveis. Sua carreira começou em 1992, quando ingressou na Unilever como estagiária de gestão da Hindustan Unilever. Ao longo dos anos, ela ascendeu na hierarquia corporativa, ocupando vários cargos em fábricas, vendas e sedes corporativas. Em 2007, foi nomeada Diretora Executiva de RH da Hindustan Unilever Limited. Mais tarde, em 2016, fez história como a “primeira mulher, primeira asiática e a mais jovem de todos os tempos” Diretora de Recursos Humanos da Unilever.
Sua liderança expandiu o capital humano da Unilever, navegando pelas complexidades de vários ambientes regulatórios e trabalhistas em mais de 190 países. Isso também levou a Unilever a ser reconhecida como a empregadora preferida de graduados em FMCG em 54 países. Nair foi fundamental para conduzir a agenda de Diversidade e Inclusão na Unilever, garantindo uma força de trabalho diversa e inclusiva.
Apesar de toda a sua experiência em RH na Unilever, sem dúvida nomeá-la para CEO da Chanel foi inesperado. Leena chegou à marca como substituta de Maureen Chiquet e após cinco anos da marca estar sem um CEO Global. Nesse período, a gestão ficou por conta do bilionário francês que tem controle da marca, Alain Wertheimer.
A nomeação de Leena surpreendeu o mercado. Sem experiência em moda, sem conexão com a cultura de luxo francesa ou italiana, e vinda de uma empresa líder no mercado de consumo, não parecia ser a melhor escolha. Porém, pensando que uma empresa é feita de pessoas para pessoas e, principalmente, para mulheres, em um mundo global onde o Oriente tem um peso cada vez maior no consumo, a sua nomeação demonstra visão de longo prazo, e as vendas têm demonstrado que a escolha foi assertiva!
Como escrito acima, o luxo é cultural e remonta a um período da história em que, na cultura italiana influenciada pelo Oriente, era a demonstração de poder, de distinção entre as classes, sofisticação, uma família aristocrata forte, como a família Medici. A vestimenta, as joias, a arquitetura, as artes, a gastronomia, tudo inspirava a contemplação e a afirmação do poder e se destacava na corte dos Médici em Florença.
No século XVI, essa cultura chega à França fruto do casamento entre Catarina de Medici e o futuro Rei da França, Henrique II. E um século depois é consolidada com mais um casamento entre Maria de Médici e Henrique IV. A importância de Maria de Médici é tão relevante na cultura francesa que o Louvre tem uma sala dedicada a ela, com vinte e quatro telas monumentais realizadas pelo artista flamengo Peter Paul Rubens, entre 1622 e 1625. O conjunto, impactante, que tive oportunidade de ver, é chamado de "Ciclo de Maria de Médici", no qual Rubens retrata a vida da soberana, desde seu nascimento em Florença, sua vinda para a França para casar-se com o rei Henrique IV até seu afastamento da corte, em 1630, quando seu herdeiro Luís XIII assume a coroa da França.
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Essa cultura da ostentação, sofisticação e distinção tem o seu apogeu durante o reinado absolutista de Luís XIV, o Rei Sol. É cultura, mas também estratégia e simbologia para a consolidação do seu poder perante os demais aristocratas e perante os demais estados, principalmente a Inglaterra. Durante seu reinado, apoiado pelo seu ministro das finanças, Jean Baptiste Colbert, que defendeu o protecionismo econômico, privilegiando consumo e produção interna e exportação desses itens, incluindo os do segmento de luxo: artes, joias, espelhos, gastronomia, etc.
Nesse savoir faire, o artesão e o feito à mão eram o ponto central do seu desenvolvimento. Esses artesãos, especializados que são pouquíssimos no mundo, no cenário contemporâneo e pós-revolução industrial, se tornaram costureiras e tiveram o seu dia celebrado ontem, 25 de maio.
Ser costureira, antiga artesã, foi um ofício extremamente relevante na nossa sociedade, mas que agora é subvalorizado com o advento da revolução industrial.
Antes da revolução industrial, todas as roupas, independentemente da classe social, eram feitas artesanalmente. Quando a roupa começou a ser usada como distinção social e demonstração de poder, os artesãos e artesãs passaram a ter um destaque privilegiado nas cortes aristocratas e mais tarde no círculo social das classes ricas.
Foi o inglês Charles Frederick Worth que criou a moda da Alta Costura como a conhecemos atualmente. Com atelier em Paris, Charles foi pioneiro em criar uma etiqueta com seu nome e a dizer para seu público riquíssimo o que eles deveriam ou não usar.
A partir deste movimento nasceram inúmeras casas de alta-costura. Mas, para isso, algumas regras foram impostas: a casa deveria se situar no triângulo de ouro, região entre as avenidas mais famosas de Paris: Champs-Élysées, George V e Avenue Montaigne. Além disso, as peças devem ser produzidas no mesmo triângulo, com materiais de primeira qualidade e feitas 100% à mão. Outros inúmeros itens são requisitados para se tornar um nome da alta-costura. Incrível que no século XXI ainda somos “reguladas” por esse poder masculino.
E então, surge a revolução industrial com a invenção das máquinas de costura, inventadas por Barthélemy Thimonnier, um alfaiate francês, a partir de 1829, e o refinamento do feito à mão começa a ser substituído pelas máquinas, a partir de 1859, um século depois. A expressão prêt-à-porter significa "pronto a vestir" e foi criada pelo estilista francês J.C. Weil, no final de 1949, depois do fim da Segunda Guerra Mundial. Pierre Cardin foi o primeiro costureiro a lançar, em 1959, uma linha de prêt-à-porter feminina, desfilada na loja de departamentos Printemps, em Paris.
Desde que muitas dessas casas, originalmente familiares, foram compradas e administradas por grupos financeiros e profissionais como a LVMH e Kering, essa proposta que vem embalada por histórias de sonhos, de príncipes e princesas, de atrizes e eventos maravilhosos e exclusivos, passou também a ser um grande negócio extremamente lucrativo. Eles embalaram o sonho em um conceito comercial e com uma potente estratégia de administração, e atualmente fazem a gestão de negócios bilionários.
A roupa, além de criatividade, até hoje é a expressão do nosso eu, é a validação da nossa identidade e, infelizmente, da classe social, estabelecendo uma distinção entre nós. Mesmo que resistamos, é a legitimação dos nossos valores.
E então, surgiu na semana passada uma grande discussão sobre os preços da bolsa Chanel e se a gestão financeira seria a representação do luxo moderno e o quanto o poder financeiro pode afastar a arte e a cultura da proposta de um item artesanal e todo o conceito centenário que está por trás.
Vale dizer que a casa Chanel, fundada pela sua homônima Gabrielle Chanel, hoje é uma das poucas casas que ainda é familiar, administrada pela família Wertheimer e que não tem ações na bolsa. E eles defendem com unhas e dentes o conceito e posicionamento de uma marca de luxo. Luxo é exclusividade, e recentemente, experiência. Não é para todos. E até o século XXI, o conceito da exclusividade era administrado pelo preço proibitivo através de uma distribuição seletiva e um serviço impecável.
Com o surgimento da internet, a distribuição seletiva, por mais que houvesse resistência das casas de luxo em ter o seu próprio site e sua conta de mídia social, foi dominada pelo e-commerce, em que qualquer pessoa em qualquer lugar pode adquirir uma peça da marca Chanel sem sair de casa. O luxo é mantido apenas no allure da Divisão de Alta Costura, roupas ainda feitas sob medida e à mão que tive a oportunidade de conferir em um desfile e atelier Chanel.
Preço, então, é sim fator relevante na estratégia de marcas de luxo, e por essa consistência e pelo entendimento de que nós, mulheres, somos o seu principal cliente e que merecemos participar da decisão do que usar, é que valorizo a gestão da Casa Chanel com duas mulheres à frente da condução do negócio. Porque, não tenha dúvida, luxo e moda são negócios, além de serem uma expressão e forma de identificação.